A Verdadeira Regra para a Formação de um Psicanalista no Brasil: Aspectos Legais e Regulatórios

Por Eduardo Freitas, Psicanalista

 

A Formação de Psicanalistas no Brasil: Aspectos Históricos, Legais e Profissionais

A formação de psicanalistas no Brasil é um tema que frequentemente gera debates intensos, especialmente ao se observar a multiplicidade de sociedades psicanalíticas e suas respectivas exigências. Contudo, é necessário analisar a questão sob a ótica da legislação brasileira, para compreender de que maneira a legislação estabelece os parâmetros para o exercício da psicanálise e a formação de seus profissionais. Este estudo se propõe a elucidar o contexto histórico, regulatório e as implicações legais pertinentes ao processo formativo dos psicanalistas no Brasil, destacando tanto a falta de regulamentação quanto os desafios impostos pelas práticas profissionais estabelecidas.

 

Contexto Histórico e Regulatório

A psicanálise, fundada por Sigmund Freud no final do século XIX, trouxe uma proposta inovadora para o tratamento das questões psíquicas. Sua abordagem atravessava os campos da psicologia e da medicina, com um enfoque único sobre os processos inconscientes e seus reflexos sobre o comportamento humano. No Brasil, a psicanálise começou a ganhar espaço nas décadas de 1920 e 1930, quando as primeiras sociedades psicanalíticas foram fundadas, como a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), sendo essas as pioneiras na formação e certificação de psicanalistas.

Entretanto, ao contrário de outras profissões na área da saúde, como a medicina e a psicologia, a psicanálise não conta com uma regulamentação legal que determine requisitos rigorosos para a formação ou certificação dos psicanalistas. Esse fato gera um cenário único no Brasil, onde a prática psicanalítica pode ser exercida por profissionais de diferentes áreas, sem a imposição de parâmetros legais uniformes.

 

Legislação Brasileira e a Formação de Psicanalistas

Ausência de Regulamentação Específica

Atualmente, a psicanálise não está regulamentada por uma legislação que determine de maneira específica os requisitos necessários para o exercício da profissão no Brasil. Isso significa que, do ponto de vista legal, não existem normas governamentais estabelecidas para se tornar um psicanalista, como ocorre com outras profissões regulamentadas. A ausência dessa legislação cria um cenário de liberdade, proporcionando uma diversidade de abordagens formativas, mas também uma certa complexidade e controvérsia em torno das exigências para o ingresso na profissão.

 

Código Civil e o Direito de Livre Exercício

O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 5º, assegura a todos o direito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, desde que atendidas as qualificações que a lei estabelecer. No caso da psicanálise, esse direito se amplia, visto que não existem qualificações governamentais estabelecidas para a prática da psicanálise. Isso permite que pessoas com diversas formações acadêmicas, como psicólogos, médicos, assistentes sociais ou até indivíduos sem formação superior, possam atuar como psicanalistas. Essa liberdade, entretanto, coloca sobre os psicanalistas a responsabilidade de agir com competência e ética, garantindo a qualidade do serviço prestado.

 

Lei nº 5.766/1971 e o Sistema Conselho Federal e Conselhos Regionais de Psicologia

Embora a Lei nº 5.766/1971 tenha instituído o Sistema Conselho Federal e Conselhos Regionais de Psicologia, regulando a profissão de psicólogo, ela não aborda a prática da psicanálise de forma direta. Por ser uma prática terapêutica distinta, a psicanálise não se submete à regulamentação do Conselho Federal de Psicologia (CFP), o que permite aos psicanalistas atuar fora dos parâmetros dessa legislação, desde que não se apresentem como psicólogos ou exerçam funções exclusivas dessa profissão. Contudo, isso exige uma constante vigilância dos psicanalistas para não incorrerem em infrações que possam gerar confusão ou violar as normas de outras profissões.

 

Lei do Ato Médico (Lei nº 12.842/2013)

A Lei nº 12.842/2013, conhecida como a Lei do Ato Médico, define as atividades privativas dos médicos, incluindo diagnóstico de doenças, prescrição de medicamentos e a realização de procedimentos invasivos. Em relação à psicanálise, os psicanalistas devem ter plena consciência dos limites de sua atuação, evitando se envolver em atividades que sejam consideradas privativas da medicina. A psicanálise deve se concentrar na compreensão dos processos psíquicos e nas intervenções terapêuticas não invasivas, assegurando sua identidade como prática distinta da medicina.

 

Sociedades Psicanalíticas e o Registro Nacional de Terapeutas e Psicanalistas (RNTP)

Sociedades Psicanalíticas

As sociedades psicanalíticas desempenham um papel fundamental na formação dos psicanalistas, embora suas exigências não tenham força de lei. Essas instituições privadas, como a Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP) e outras filiadas, têm requisitos formativos que envolvem cursos teóricos, supervisão clínica, análise pessoal e a adesão a códigos éticos específicos. Entretanto, essas normas são estabelecidas dentro do contexto de cada sociedade e podem variar conforme a escola teórica à qual pertencem.

 

Registro Nacional de Terapeutas e Psicanalistas (RNTP)

O Registro Nacional de Terapeutas e Psicanalistas (RNTP) é uma entidade independente que visa reconhecer psicanalistas com diferentes formações teóricas, sem priorizar nenhuma escola psicanalítica específica. Esse registro confere aos profissionais que se associam uma série de benefícios, incluindo credibilidade e maior visibilidade no mercado de trabalho. A inscrição no RNTP também oferece aos psicanalistas acesso a uma rede de apoio profissional, com eventos, workshops e conferências, favorecendo o desenvolvimento contínuo da prática psicanalítica. Além disso, ao promover a pluralidade, o RNTP ajuda a consolidar uma psicanálise aberta e diversificada, garantindo aos psicanalistas a flexibilidade de praticar dentro de diferentes abordagens teóricas e clínicas.

 

Possíveis Implicações Legais e Restrições

Apesar da falta de uma regulamentação legal específica para a psicanálise, o exercício dessa prática deve observar algumas normas legais gerais que podem impactar diretamente a atuação dos psicanalistas. Entre elas, destacam-se:

Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990)

O Código de Defesa do Consumidor assegura que os serviços prestados aos clientes sejam adequados e livres de práticas enganosas. Os psicanalistas devem garantir a transparência em relação às suas qualificações, evitando qualquer tipo de alegação falsa ou prejudicial à confiança do cliente. A ética e o respeito aos direitos dos consumidores devem ser mantidos em todas as etapas da prestação do serviço terapêutico.

 

Penalidades por Charlatanismo (Artigo 283 do Código Penal)

De acordo com o Código Penal Brasileiro, charlatanismo é considerado crime, e os psicanalistas devem evitar fazer promessas de cura ou resultados garantidos. A prática terapêutica deve ser pautada pela ética, com o compromisso de esclarecer aos pacientes que os resultados da psicanálise podem variar conforme o indivíduo e o processo terapêutico.

 

Conclusão

A formação e a prática da psicanálise no Brasil, embora marcadas pela ausência de uma regulamentação legal específica, envolvem uma rede de práticas formativas estabelecidas pelas sociedades psicanalíticas e regulamentações gerais que asseguram a ética e a responsabilidade no exercício da profissão. A atuação profissional deve ser sempre guiada pelo respeito às normas gerais aplicáveis, como o Código de Defesa do Consumidor e as leis sobre charlatanismo, com foco na promoção do bem-estar psicológico dos pacientes. A adesão ao Registro Nacional de Terapeutas e Psicanalistas (RNTP) surge como uma excelente alternativa para fortalecer a profissão, garantindo aos psicanalistas uma prática mais segura, visível e reconhecida, e contribuindo para a consolidação de uma psicanálise pluralista, ética e competente.

 

Referências

FREUD, Sigmund. Introdução à psicanálise. 24. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2010.

LAZARUS, A. A. (1995). Terapias comportamentais e psicanálise: uma crítica comparativa. São Paulo: Editora Ática.

SANTOS, A. R. (2001). O Direito e a Psicanálise: Aproximações e Distâncias. São Paulo: Editora Atlas.

SILVA, F. L. (2013). Psicanálise, Direito e Clínica: Possibilidades de Convergência. Rio de Janeiro: Editora FGV.

Livros
“Ética e Psicanálise: O que Está em Jogo?” – Sérgio Telles

Descrição: Este livro oferece uma reflexão crítica sobre a ética psicanalítica, abordando questões centrais sobre a responsabilidade do psicanalista frente ao paciente, a ética na formação e na prática psicanalítica, e como essas questões se relacionam com a regulamentação da profissão. Telles também discute a moralidade na prática clínica e as implicações legais do exercício da psicanálise sem regulamentação formal no Brasil.

 

“Psicanálise, Ética e Lei: Entre o Público e o Privado” – Gabriel Lessa

Descrição: Lessa explora a interface entre psicanálise, ética e regulamentação, refletindo sobre como o código de ética psicanalítico se relaciona com as leis brasileiras e a ausência de um conselho oficial para regulamentar a prática. O autor também examina o dilema da moralidade no exercício profissional da psicanálise e os desafios éticos que surgem dentro de um contexto jurídico complexo e em constante mudança.

 

“A Ética na Prática Psicanalítica” – D.W. Winnicott (Organizado por)

Descrição: Embora focado principalmente na prática clínica e ética do psicanalista, este livro aborda as questões de como os profissionais devem agir de acordo com padrões éticos, principalmente quando não existem diretrizes regulatórias formais, como ocorre no Brasil. A obra é essencial para entender as implicações de uma prática ética num cenário onde a regulamentação legal é vaga.

 

“Regulamentação da Psicanálise e os Desafios Éticos no Século XXI” – Jean-Michel Quinodoz

Descrição: Quinodoz oferece uma análise detalhada sobre a regulamentação da psicanálise ao redor do mundo e discute os desafios enfrentados pelos psicanalistas em países como o Brasil, onde a psicanálise não tem uma regulamentação específica. A obra também aborda como as questões éticas se tornam ainda mais complexas nesse cenário, com especial atenção ao impacto da regulamentação profissional sobre a prática clínica e a relação entre ética, moralidade e a identidade da psicanálise.

 

“Psicanálise e Direito: Fronteiras e Conflitos Éticos” – Mauro P. O. Pereira

Descrição: Este livro analisa a interseção entre psicanálise, direito e ética, com uma ênfase nas questões regulatórias e legais que impactam os psicanalistas no Brasil. A obra examina a falta de regulamentação específica para a profissão, discute as implicações éticas e morais de uma prática sem conselhos oficiais e reflete sobre os conflitos entre as normas psicanalíticas e a legislação do país.

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